CADÊ?

fevereiro 24, 2009

Carnaval, Carnaval


Eu vejo as pernas de louça
“Da moça que passa e não posso pegar
“Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”
Chico Buarque

A bermuda de jeans e a camiseta verde. Calçou os tênis. Virou-se. Encarou o espelho. Penteou-se. Ouvia Don’t Let The Dragon Eat Your Mother, brother, de John McLaughlin.
José entrou no quarto.
José: — ‘Tamos no carnaval, cara!
Ele: — Eu sei.
José: — Então?
Ele balançou o corpo. Uma Gibson “The Les Paul” imaginária nas mãos ágeis.
José: — O problema é que não observamos as raí...
Ele: — Vamos.
Saem.
* * *
“REINADO DE MOMO
“PALÁCIO DA FOLIA
“Edito Real
“Sua majestade, Rei Zé Fortes, Primeiro e Único, no uso de suas intransponíveis e irrevogáveis transições legais
“Decreta
“Art. 1º - A partir de hoje reina a alegria e é revogada a tristeza.
“Art 2º - Os descontentes com o Reinado de Momo deverão ser confinados:
“a) nas praias de Luiz Correia ou Barra do Ceará;
“b) em Sete Cidades; e
“c) nas matas de Timon e adjacências.
“Art 3º - Nos clubes, todos devem pular, lépidos e fagueiros, juntos ou separados, porque a orientação do Rei é de que sem alegria não dá.
“Art 4º - Os condes e conselheiros do Reinado anterior considerem-se demitidos, pois no novo Reinado a bossa é nova.
“Art 5º - As coroas devem abdicar máscaras e soltar os en­xovalhos, uma vez que no atual Reinado toda mulher é boa.
“Art 6º - Fica abolido o preconceito à transação gay; afinal, todos são iguais no carnaval e nem sempre o saracoteio dos quadris homologa a placa.
“Art 7º - Os que saírem nas ruas, pensando ficar fora do trino momino, deverão ser seqüestrados e recolhidos ao Quartel General da Folia, na Avenida Frei Serafim, até a passagem do Trio Elétrico.
“Art 8º - Revogadas as disposições e indisposições em contrário, o presente Edito Real entra em vigor na data de sua publicação.”
(Jornal O Dia, edição de 21/22 e 23 de fevereiro de 1982, pág. 7).
* * *
Aqui Pegou.
18h15min.
José, ele, a menina de óculos e o cara de bigode de arame.
Três copos. Quatro garrafas.
José: — Quem é homem não anda assim.
Ele: — Tudo é brincadeira.
Menina de óculos: — Li depoimento de um psicólogo que dizia o carnaval permitir ao individuo externar seus sentimentos reprimidos, o que somente é possível durante os três dias desta festa orgíaca, pois nos outros dias a sociedade possui um papel castrador em face daquilo que ela entende por atitudes amorais.
Cara de bigode de arame: — É, quem é homem não se veste assim. Nem no carnaval.
Ele observou o voar assustado e trinados dos pardais sobre as árvores da Avenida Frei Serafim.
Blocos de sujos, animados, vão e voltam, vão e voltam.
Ele e José vêem um bloco: Unidos do Esculacho. Todos com túnicas.
Ele: — É o bloco dos artistas.
José: — Aquele cara ali é artista?
Ele: — É.
José: — Todos eles são artistas?
Ele: — Não. Alguns que somente são veados.
* * *
Uma garota, short de jeans e blusa com a inscrição Univer­sity of California, encostada num Corcel II.
Um cara de calça preta e camiseta no ombro, depois de observá-la por algum tempo, aproximou-se.
Cara de calça preta e camiseta no ombro: — Oi, Pussy.
Garota de short jeans e blusa com a inscrição Univer­sity of California: — Hem?
Cara de calça preta e camiseta no ombro: —Você é Pussy!
Garota de short jeans e blusa com a inscrição Univer­sity of California: — Você está enganado. Eu não sou Pussy.
César que não vem. O cara de calça preta e camiseta no ombro está bêbado. Cambaleia ao afastar-se da garota que chamara Pussy.
* * *
“Numa cidade que se pretende civilizada, a polícia não acode aos desditosos habitantes martirizados por alguns engraçados sem espírito que levam horas inteiras espancando peles dos zabumbas, quando as próprias é que deveriam ser escovadas, uma vez que a autoridade consente semelhantes exibições grotescas, inqualificáveis, dignas de zulus ou boçais.”
(Revista Rua do Ouvidor, de 27/01/1900, citada por Chico Alencar no artigo Acabou o carnaval (mas faz muito tempo), publicado em O Pasquim, edição de 25/02 a 03/03/1982, pág. 7).
* * *
Um corpo no chão. Ninguém lhe dá atenção.
* * *
Dançavam juntos, não dançavam? Por que, então, parou? Por que a olhou diferente?
A moça: — O que houve?
O rapaz: — Não devia estar com você
A moça: —Por quê?
O rapaz: — Você sabe.
A moça: — O telefonema?
O rapaz: — É
A moça: — Esquece, pô.
(— Fale.
— Talvez você já tenha percebido.
Pausa.
— Eu gos...
— Alô? Você está me ouvindo?
— ‘Tou, sim. Fale
— Eu te a...
— Olha, você é um cara legal. Mas a ...
— Continue.
Pausa
— A minha cor, né?
Pausa.
— A minha cor, né?
Afastara-se do orelhão Sumiu na noite.)
* * *
O moreno vestido como mulher e bucho forjado. Acompanhou-o à avenida o vizinho, sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito.
O branco vestido com bermuda superestampada e camiseta azul, sem mangas. Saiu no Puma.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado divertia-se, seguindo qualquer bloco.
O branco do Puma bebia no Coisa Fina; loura, sentada em suas coxas, vez em quando levava-lhe à boca um naco de carne.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado suado quando o dente começou a doer.
O branco do Puma balbuciou qualquer coisa no ouvido da loura. Saíram.
Bêbado, com um litro de Mangueira na mão, deu um trago ao moreno vestido como mulher e bucho forjado.
O branco do Puma, com a loura, na pista da avenida, num e noutro bloco.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado viu o branco do Puma e disse para o sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: — Aquele filho da puta me tirou o emprego e não me pagou direito.
O branco do puma espremia a loura com força.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado, referindo-se ao branco do Puma: — Vou dá um pau nele!
Sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: — Deixa pra lá, compadre.
O branco do Puma continuava a espremer a loura.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado disse: —Vamos esquecer.
O branco do Puma pisou no pé do moreno vestido como mulher e bucho forjado.
* * *
“Se as fantasias revelam, então o carnaval mostra um mundo invertido, onde o pobre pode ‘bancar’ o rico; e os donos do poder podem buscar uma aproximação como mundo dos homens, ‘bancando’ pobres. Entrevistas com pobres que desfilarem de ‘reis’ revelam esse êxtase carnavalesco, quando alguém pleno de anonimato social ganhou os aplausos, as atenções e os olhares de to­dos os segmentos sociais num desfile. Entrevistas com gente de classe média alta indicam precisamente o oposto: aqui, há um prazer — como o de um arquiteto de sucesso — de ‘pisar de pé descalço o asfalto da Avenida.’ (...) Quer dizer, eu continuo achando admirável que uma sociedade no final do século XX ainda continue a celebrar suas relações sociais utilizando essa regra de inversão e, assim fazendo, possa permitir e legitimar uma ‘troca de lugar’, ainda que essa troca seja burocratizada, controlada pelo Estado, fugidia e tenha data marcada. Porque, apesar de tudo, é uma troca que permite vivenciar e justiça e a igualdade, a liberdade, a vitória e a esperança. Esses ingredientes centrais de qual­quer transformação social concreta.”
(Fragmentos do artigo Carnaval: o verdadeiro milagre brasileiro, de Roberto da Matta, publicado em O Pasquim, edição de 26/02a 04/03/1981, pág. 5).
* * *
— É bicha.
— Não. É uma mulher.
— É bicha.
— Porra! É mesmo!
— Olha outra ali.
* * *
Primeiro uma chuvinha fina. Parara. Pouco depois, como da vez passada, espectadores à procura de abrigos. A maioria permaneceu na chuva
— É incrível, ouvintes. Nem a chuva que desaba sobre o centro da Cidade Verde consegue afastar os espectadores da Frei Serafim. A chuva aumenta cada vez mais o entusiasmo do folião. Dá mais gosto de se ver um carnaval assim.
* * *
Ele e José tinham deixado numa mesa do Aqui Pegou a me­nina de óculos e o cara de bigode de arame. Caminhavam lenta­mente. José não parava de falar. Ele viu a garota de short jeans e blusa com a legenda Univer­sity of California.
Ele: — Olá, gracinha.
Garota de short jeans e blusa com a legenda Univer­sity of California: — Pussy.
Ele: — Hem?
Garota de short jeans e blusa com a legenda Univer­sity of California: — Pussy. Me chamo Pussy. Ele fez sinal para José.
Garota de short jeans e blusa com a legenda Univer­sity of California: — Parece que ele se chateou.
Ele: — Um chato!
* * *
Locutor do Posto nº 2, da Secom:
— Atenção, Laura Maria. Atenção, Laura Maria. Sua mãe te espera aqui no Posto nº 2. Compareça o mais breve possível.
* * *
Quem não conhece o carnaval não conhece o Brasil, e quem não gosta de carnaval não gosta da alma brasileira. O carnaval ainda é feito pelo povo, já que a participação popular espontânea é maior que qualquer interferência dirigida, venha ela do poder público, de empresas privadas ou de qualquer pessoa diretamente interessada na festa. Essa manifestação espontânea é tão pode­rosa que mesmo durante as ditaduras impostas ao Brasil — do Estado Novo ao período pós-64 — conseguiu ser mais forte que a re­pressão. O povo continua dançando e cantando, porque para o povo brasileiro cantar é tão importante quanto sobreviver. (...)
“O morador do morro, quando encontra um vizinho no bar, não quer falar de suas desgraças. Prefere cantar sambas. Se tiver um pouquinho de sensibilidade, já faz um ritmo. Um pouco mais e improvisa em verso. Esse comportamento não morre com a ação de forças externas e garante a eterna sobrevivência do carnaval.”
(Albino Pinheiro, fragmento de O carnaval é eterno, revista Veja, nº 703, pág. 90).
* * *
José no bar.
Três garrafas vazias sobre a mesa. Pediu a quarta. Duas vezes levantara-se e fora ao banheiro. Fedorento.
Cerveja esquentando no copo.
* * *
Populares cercavam um corpo no passeio da Avenida Miguel Rosa, em frente à AFAL.
O assassino agiu rapidamente. O homem corria com dificuldade e Violeta, sóbrio, facilmente abateu-o.
Conjectura-se que tudo aconteceu por causa de uma puta chamada Margô.
Violeta, após matar o homem, tirou da bolsa uma gilete e começou a cortar-se, principalmente no antebraço esquerdo.
Desesperado, deixou a peruca cair.
* * *
As paredes desbotadas. Quase brancas. Cadeira de palha, bacia, jarra, penteadeira e cama.
Pussy virou-se. Encontrou-se diante de um homem que lhe sorria. Espantada, protegeu sua nudez. Levantou-se rapidamente. Vestiu-se. Abriu a porta. Saiu.
Na rua, duas senhoras, com terços e véus, caminhavam para a igreja.
O sol há muito fora parido.

10 comentários:

Adriano Lobão Aragão disse...

Há muito admiro esse seu conto. Parabéns.

M. de Moura Filho disse...

Obrigado, Adrião... também por sua visita.

Kenard Kruel disse...

caramba, confundir o poeta adriano lobão aragão com o adrião... neto... só mesmo para um contista tarantular como o m. de moura filho.

não sei se você vai perdoar, adriano, mas eu vou perdoar em nome da paz que deve reinar no carnaval.

aproveitando a oportunidade, devo dizer e digo que esse é um dos meus contos preferidos. está na seleção dos cem melhores contos do mundo. de todos os tempos.

não se deixem de mim. beijos kenardianos.

Airton Sampaio disse...

Leonam, este seu conto é uma obra-prima. Agora ou se escreve melhor sobre o tema ou se o amesquinha. Abração!

M. de Moura Filho disse...

Adriano, Kenard, não deve ter se sentido ofendido. Se o ofendi, peço-lhe desculpa. O erro ocorreu. E como erro, não foi intencional.
Kruel, obrigado pelo puxão de orelha. Vou reproduzir o comentário, com a retificação.

M. de Moura Filho disse...

Obrigado, Adriano... também por sua visita.

M. de Moura Filho disse...

Airton, bom receber a sua visita novamente. E, mais ainda, com um comentário seu.
O seu comentário, o do Adriano Lobão Aragão e o do Kenard Kruel me deixam feliz, porque sei que não são confetes.

Adriano Lobão Aragão disse...

Não me ofendi nem um pouco. Na verdade, achei que fosse um trocadilho com a quantidade de "ãos" no meus sobrenomes.

Mas isso não interessa, o que interessa é que "Carnaval, Carnaval" é um conto exemplar e desde sua primeira publicação já era antológico. E o comentário do Airton esclarece exatamente o que eu quero dizer com "exemplar".

J.L. Rocha do Nascimento disse...

Leonam,
estava recolhido nesse período momesco e sem acesso à internet. Somente agora vejo no seu blog a publicação, bem oportuna, de Carnaval, Carnaval. Quero me associar às palavras, pela ordem, do Adriano, Kenard e Airton. O conto é um clássico. Quem o lê daqui a 50 anos, haverá de constatar que ele não sofreu e nem sofrerá os efeitos do tempo.

abs e dê notícias!

M. de Moura Filho disse...

J. L., obrigado pelas palavras. Adriano, Kruel, Airton e você podem me convencer de que Carnaval, Carnaval tem muito mais valor do que imagino que tenha.
Que tal semtarmos amanhã, 28, no Bellobar, e colocarmos os assuntos em dia, irmão?