CADÊ?

outubro 11, 2008

Ela, o menino e as aventuras de Tarzan*


Dedico essa narrativa nada semiótica aos contistas Airton Sampaio, Bezerra JP e M. de Moura Filho;
aos poetas F. Wilson e Emerson Araújo.

Ali, no cruzamento da Paissandu com a João Cabral, Violeta, a espanhola, que se perdeu cedo na vida, era a maior atração. Conta-se que o próprio pai cuidou de deixá-la na porta do bordel somente com a roupa do corpo e sangrando. Tinha os lábios carnudos e olhos de Capitu. Diariamente, ao entardecer, insinuava-se sobre o parapeito da janela, à mostra os seios fartos e ainda duros. Especialidade: garotos imberbes e sequiosos. Fama: um bezerro nas entranhas.
Na outra esquina, um bar. Ali, toda manhã, um menino e uma rotina: abrir o estabelecimento e remover os resíduos da noite: tampinhas de garrafa, tocos de cigarro, estilhaços de vidro, algumas desilusões... Feita a faxina, era só aguardar o pai, por volta do meio-dia. Enquanto isso, a distração: ouvir discos de Jovem Guarda e ler revistas em quadrinhos.
Certo dia, sentado por detrás de uma pequena mesa, lia as aventuras de Tarzan, o Rei da Selva. À frente, sobre a mesinha, uma montanha de vinis, dois pacotes lacrados de cigarro Continental com filtro, uma carteira aberta para venda a retalho e um maço de fósforos Fiat Lux.
Ligou a radiola, colocou o braço na segunda faixa do lado b e sobre ele equilibrou uma caixinha de fósforo. Aumentou o volume e deu passagem a Evaldo Braga, que explodia os pulmões.
De repente, antes que Tarzan lançasse a lança certeira sobre o peito do leopardo, um cheiro forte de Água de Colônia e desodorante Mistral anunciou a chegada de Violeta, lépida e faceira. Sobre os lábios carnudos, uma camada de batom vermelho carmim, e nas unhas o esmalte, no mesmo tom, contrastava com o encardido na ponta dos dedos da mão direita.
Lentamente, ela pousou os braços nus sobre a mesa, o que deixou agitado o coração do menino. Aqueles peitos grandes, a um palmo do nariz, o fizeram perder a respiração. Tomou-lhe o Almanaque nº 54 do Homem-Macaco, recuou dois passos, levantou o vestido com uma das mãos, deixando-o à altura do umbiguinho; com a outra, enfiou a revista dentro da calcinha, acomodando-a entre as pernas. Por alguns instantes, flexionou a musculatura dos quadris e movimentou-se rapidamente para frente e para trás, para frente e para trás, tempo necessário para ele perceber que Tarzan, estranhamente, enquanto sumia de seu campo de visão, não demonstrava muito esforço em escapar do bote que, manhosa, lhe preparava a aranha peçonhenta.
Boquiaberto com a cena, ficou a imaginar que golpe iria o herói aplicar para vencer mais aquela batalha. Não obteve a resposta. É que ela, de supetão, interrompeu a coreografia, avançou os dois passos que antes recuara e soltou a barra do vestido, que ficou rente com a covinha dos joelhos. Ele, aflito, não parava de pensar no herói embrenhado no coração daquela selva cheia de armadilhas. O que fazer? Desvencilhar-se das teias da tarântula e se refugiar ao pé do vestíbulo da gruta seria a melhor saída, pensou ele, como que querendo adivinhar a próxima seqüência da trama. E ela? Precipitou-se sobre o maço aberto de cigarro, de onde retirou um. Sem pressa, fitou-o de forma desafiadora, com os olhos oblíquos e esbraseados, então se aproximou um pouco mais, agachou-se, envolveu firmemente o cigarro entre os dedos e o acendeu e o colocou suave entre os lábios e, lembrando Gilda, abocanhando-o, deu uma longa tragada. Subitamente, deixando a marca do batom no filtro, afastou da boca o cigarro, sem descuidar de manter, envolvendo-o novamente entre os dedos da mão, acesa a brasa tremulante. Foi quando, com a mesma boca generosa, deu-lhe um beijo tórrido.
Não esboçou ele qualquer reação. O hálito quente, misto de cerveja da noite passada e cigarro, incendiou-lhe a boca e o corpo. Aproveitando-se daquele estado de aparente letargia, ela cobriu-lhe o rosto com bafoeiradas de fumaça e, bem de perto, fazendo beiço, disse:
--- Não demora muito, é só crescer mais um pouco e eu quebro esse cabresto!
E assim, tão rápida como chegou, Violeta saiu, mexendo as cadeiras, ao som de Sorria, meu bem. Ao cruzar a porta, olhou para trás e, mais uma vez provocante, o gesto obsceno antecipou o que pretendia fazer. E antes de descer a calçada e atravessar a rua, sacou de dentro da calcinha o Almanaque nº 54 e o arremessou um Tarzan amarrotado e quase sem fôlego. Imóvel, ele. Mas quando percebeu que, apesar de tudo, o Rei das Selvas estava livre de qualquer perigo, molhou os lábios, recusando-se, contudo, a engolir a saliva. Queria apreciar por mais algum tempo o sabor agridoce do beijo, a rótula daquele joelho, o umbiguinho redondo, a marca da vacina na altura do ombro esquerdo, a essência saturada do desodorante vagabundo, o olhar de pidona... Em transe, nem percebeu que o disco parou de rodar e o braço automático da radiola retornara à posição de descanso. Tentou retomar a leitura a partir da página 69, mas não conseguia ler o que estava escrito nos balões nem acompanhar os passos de Tarzan, que agora saía em busca da trilha para a Cidade Perdida, em companhia de um guerreiro zulu.
Antes, haveria de localizar o cemitério dos elefantes e decifrar o enigma dos pigmeus das montanhas, o que lhe daria a imunidade necessária para vencer a etapa seguinte do desafio: cruzar o desfiladeiro da morte. Mas o pior estava por vir. Ao final do desfiladeiro, Tarzan e seu guia deparariam o rio das cobras, de passagem obrigatória, sem saber que na outra margem um grupo de selvagens africanos armados de arcos e flechas, estas venenosas, o espreitava. Mal chegaram em terra, os primitivos, rufando tambores e entoando cantos de guerra, avançaram, o feiticeiro à frente, em direção do Lorde de Greystoke.
Nesse momento, o menino despertou aos gritos do Rei dos Macacos, que esmurrava o peito e bradava, em tom de advertência: Krig-ha, bandolo! .
* Conto extraído do Confraria Tarântula, publicado quinta-feira, 9.

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