CADÊ?

agosto 30, 2008

Uma fábula dos tempos hodiernos*

Crédito: Salvador Dali


“Mas o pelicano e a coruja a possuirão, e o bufo e o corvo habitarão nela; e ele estenderá sobre ela o cordel de confusão e nível de vaidade.” (Isaías 34:11)


Por Emerson Araújo


“A Fábula é uma narrativa alegórica em prosa ou verso, cujos personagens são geralmente animais, que conclui com uma lição moral. Sua peculiaridade reside fundamentalmente na apresentação direta das virtudes e defeitos do caráter humano, ilustrados pelo comportamento antropomórfico dos animais.” Começo o texto com esta conceituação singular sobre a espécie narrativa denominada de fábula para tecer, também, algumas considerações preliminares sobre o belíssimo conto O Corvo publicado no blog da confraria Tarântula por J. L. Rocha do Nascimento recentemente.
O conto
O Corvo me chamou atenção pela leveza estilística da narrativa mesmo não trazendo nenhuma novidade experimental na forma de narrar como é do hábito dos atuais contistas que se lê volta e meia. Mas é um belo conto poético onde a força fabular nos remete para o universo humano diversificado, ensinando a todos os seres que respiram que existe um corvo a nos dar as mais dolorosas bicadas, a invadir nossas entranhas, às vezes, lentamente, outras vezes nem tanto. O conto de J. L. Rocha do Nascimento nos coloca diante desta certeza.

Outro aspecto que percebi na seqüência da narrativa de
O Corvo foi a construção de imagens alucinantes num jogo verbal morfossintático que engrandece ainda mais a literatura realista fantástica cunhada por um Garcia Marquez. Neste conto percebe-se, ainda, a engenharia frasal que me agrada muito na narração e que o aproxima dos poetas barrocos estilistas das assimetrias em tempos passados. Digo, também, quando não se experimenta na construção da forma literária, deve-se propor mesmo na forma tradicional de contar, poetizar, romancear algo de novo, inusitado. Isso é muito claro em J. L. da Rocha Nascimento e em seu O Corvo, agora. Atrevo-me até mesmo a afirmar um sacrilégio para os outros confrades do Tarântula que João Luiz Rocha do Nascimento carrega nos seus contos a veia literária ibero-americana, encontrada em poetas e narradores singulares como Pablo Neruda, Garcia Lorca, Murilo Rubião, Machado de Assis, Júlio Cortazar, Borges, Nicolas Guillen, Graciliano Ramos e tantos.

Mas volto a insistir,
O Corvo antes de ser um exercício de linguagem, é um manancial de ensinamentos para o ser humano. É aqui, seguindo o conceito de fábula/alegoria que o conto de J. L. da Rocha Nascimento se realiza por completo. Deixa-nos aprendizados e algumas reflexões sombrias diante da condição humana dentro de todos os contextos. As bicadas do corvo quando toma posse do cérebro, no conto, nos induz para uma concepção existencial inexorável, a incapacidade de controlar as nossas ações diante das realidades lacrimejantes impostas. As bicadas são metonímias trágicas de dominação, de confusão, violência, hipocrisias, mentiras, vaidades, dissimulações, jogo de interesse, negatividade, falta de criatividade e tantas aberrações que nos são colocadas nos cotidianos diversos em siglas e labirintos inatingíveis. No conto, ainda, o cérebro bicado já não esconde a falta de resistência aos dominadores deste e de outros mundos, basta uma breve reflexão para se perceber esta verdade em todos nós.

Por fim, sem querer vender nenhuma doutrina bíblica de plantão, percebi, na primeira leitura de O Corvo, o tom profético catastrófico e apocalíptico do mesmo e que me remeteu para o profeta Isaías do antigo testamento e sua epígrafe bíblica: “Mas o pelicano e a coruja a possuirão, e o bufo e o corvo habitarão nela; e ele estenderá sobre ela o cordel de confusão e nível de vaidade.” (Isaías 34:11), confirmada na vitória do corvo sobre as nossas pueris resistências, vejamos: “Talvez no dia em que elas cobrirem meu corpo como um manto negro é que irão acreditar em mim, mas aí já terá sido tarde, eu creio. O corvo, impune, baterá asas.”. Infelizmente o corvo mais um vez venceu em lugar do ser humano.


* Postagem extraída do blog de Emerson Araújo, publicada hoje.

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