Por J. L. Rocha do Nascimento
Não me lembro de quando tudo começou. Lembro-me que primeiro vieram os pardais, depois algumas graúnas, em bandos. Os sabiás, logo em seguida, não paravam de cantar. Por fim, pousou um falcão e ele era garboso, as asas tocando o chão, um olhar imponente, todos pareciam lhe render homenagens. Pouco a pouco, uns silenciosamente outros batendo as asas, foram se aninhando, o que até me divertia. No início ainda tentei afugentá-los, mais pela sujeira que deixavam do que pelo peso sobre minha caixa craniana. Não demorou e eu desisti, mesmo porque eram alegres e simpáticos, cada um com uma plumagem mais bonita do que outra, eu podia dizer que a vida até que estava colorida. E viviam em perfeita harmonia, assim concluía, àquela época. Vinham sempre no final da tarde, quase sempre em bandos e na manhã seguinte, em revoada, batiam suas asas, o destino eu ignoro, mas sempre estavam de volta ao entardecer, com o papo cheio, como se costuma dizer, até que um dia não voltaram mais. Algo os assustou e sei o motivo. Foi quando chegou o corvo, com seu canto de mau agouro e seu bico curto e afiado, sua veste negra como o breu da noite, nenhuma candura havia nele. Foi um duro golpe, justo no momento em que eu começava aprender o canto do sabiá eles se foram. Sinto saudade, ainda que tivesse, toda manhã, que aspergir os cabelos, antes de penteá-los, para remover sementes, restos de insetos e pequenos frutos deixados para trás.
O corvo, quando pousou, de imediato abriu uma clareira em volta com suas garras afiadas. Coincidentemente, meus cabelos começaram a cair. E não parava de grasnar, de forma tão sombria que assustava a coruja em frente. Aliás, minto, parava quando sentia fome, imagino. Aí então começava a bicar mais fortemente, que nem uma britadeira de asfalto. De tanto insistir, abriu-se um buraco no meu cérebro do tamanho de uma cratera lunar, embora aqueles açougueiros, que se autodenominam médicos, digam que, na verdade, a tal cratera foi conseqüência de uma queda acidental. Certo dia bicou tanto que levou meu lobo temporal e se alojou no lugar. Dali só saía à noitinha, quando todos em minha volta estavam dormindo, mas logo retornava com restos de vísceras em volta do bico, sempre ele. Foi a partir desse momento que me veio essa apatia que alterno com raros momentos de euforia, que é quando vejo paredes no lugar de portas e estas no lugar daquelas. Todas as pessoas segundos depois de vê-las me parecem estranhas. Essas mesmas pessoas, que se queixam ser da família, do que não me convenço, dizem não acreditar que na minha cabeça há esse demônio como inquilino, nessa altura já pensando no melhor meio de se reproduzir.
Insisto em dizer que não estou louco. E mais: neste momento o corvídeo está comendo o que me resta dos neurônios, agora em silêncio, que é pra não chamar atenção. E eu é que não tenho culpa se eles não conseguem sequer enxergar suas alas negras. Talvez no dia em que elas cobrirem meu corpo como um manto negro é que irão acreditar em mim, mas aí já terá sido tarde, eu creio. O corvo, impune, baterá asas.
* Conto extraído do Confraria Tarântula, publicado em agosto, 26,
Um comentário:
Poeta, de uma sinsibilidade incrível!
Parabéns!
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